Zenaldo pode responder por falsidade ideológica, improbidade administrativa e falsificação de documentação pública
É incrível, mas verdadeiro: a Prefeitura de Belém alterou as Notas de Empenho dos respiradores pulmonares que ela comprou a R$ 260 mil cada, para os pacientes da Covid-19, o que pode até configurar vários crimes, já que se trata de documentos oficiais.
Como você leu por diversos meio de comunicação da imprensa, os equipamentos comprados pelo prefeito Zenaldo Coutinho foram, possivelmente, os mais caros do Brasil, chegando a custar mais que o dobro do que foi pago por governos e prefeituras de vários pontos do País. No sábado, porém, a Prefeitura inseriu novos dados nas Notas de Empenho, que estão no portal da Transparência, fazendo com que esse valor caísse para apenas R$ 65 mil. Mas a reportagem já havia copiado toda a documentação, uma vez que começou a investigar o caso no último dia 13. Veja abaixo as Notas de Empenho originais e as alteradas.
A possível fraude, que, em tese, pode até levar à prisão e afastamento do prefeito teve início na sexta-feira, após um blogueiro vazar, na internet, a notícia sobre os R$ 260 mil pagos por esses ventiladores. No final da manhã, o portal da Transparência tirou do ar os contratos e despesas da Prefeitura com a Covid-19. Na parte do portal não dedicada à doença, sumiram todos os empenhos a partir de 2011. No entanto, houve protestos nas redes sociais e as informações voltaram. Mas, ainda naquele dia, foram desaparecendo os vários contratos da Prefeitura com a GM Serviços Comércio e Representação Eireli, a empresa que vendeu esses equipamentos. Outros documentos também sumiram, como o Mapa Consolidado das compras emergenciais da Secretaria Municipal de Saúde (SESMA). Assim como as Notas de Empenho, ele mostrava a quantidade e o preço desses ventiladores.
Já na tarde de sábado, o portal apresentava as Notas de Empenho alteradas. Duas delas (as de número 5754/2020 e 5755/2020), passaram a informar que os R$ 260 mil da compra não se referiam a 1 ventilador, mas a 4, com valores unitários de R$ 65 mil. A maior alteração, porém, ocorreu na Nota de Empenho 5756/2020. Antes ela dizia que 1 respirador pulmonar custou R$ 220.624,00, mas sem explicações quanto ao motivo de ele ser mais barato que aqueles das outras Notas. Com a mudança, esse valor de R$ 220.624,00 passou a se referir à compra de 2 ventiladores, a R$ 65 mil cada, e 3 monitores de multiparâmetros, a R$ 30.208,00 cada. Até as cores das Notas mudaram, e sumiram as informações sobre o saldo da dotação orçamentária, que era a verba prevista no orçamento da Prefeitura para a aquisição desses equipamentos. Nenhum gasto público pode ser realizado sem que exista essa dotação.
VALOR MENOR
As Notas de Empenho, as originais e as modificadas, dizem que não houve licitação e nem mesmo um contrato para a compra desses equipamentos: apenas um “Termo de Reconhecimento de Dívida”. Elas também não trazem nenhuma informação sobre as características desses ventiladores: apenas que são da marca Mindray. Mesmo assim, conseguimos localizar, na internet, um ventilador pulmonar da Mindray que foi comprado pela Prefeitura do município de Naviraí, no estado de Mato Grosso do Sul, também para os pacientes da Covid-19. O contrato diz que aquela prefeitura o adquiriu em 31 de março, ou seja, na mesma data da Prefeitura de Belém. Só que em Naviraí ele custou R$ 98 mil, ou bem menos da metade do que pagou Zenaldo, com os seus turbinados ventiladores de R$ 260 mil.
A GM Serviços Comércio e Representação de quem Zenaldo comprou esses ventiladores, tem uma história para lá de pitoresca: ela foi criada como uma simples cafeteria e doceria, no município de Ananindeua, mas hoje, diz a Receita Federal, faz de tudo um pouco, incluindo a confecção de roupas, impressão de materiais publicitários, limpeza de casas, serviços de engenharia e até “atividades de psicanálise”. Por incrível que pareça, são, a todo, 35 “atividades”, nas mais variadas áreas. Entre os anos de 2013 e 2018, não há empenhos da Prefeitura em favor dela, no portal da Transparência. No ano passado, há apenas um, de R$ 60 mil, que foi pago. Mas neste ano eleitoral, os recursos empenhados para pagamento à essa empresa já alcançam mais de R$ 1,7 milhão, a maioria sem licitação.
Prefeito pode ser afastado ou até ir para a prisão por alteração.
Conversamos com advogados que confirmaram que a alteração das Notas de Empenho pode configurar vários crimes: entre eles, falsidade ideológica, improbidade administrativa e falsificação de documentação pública. Segundo ele, o caso pode levar, inclusive, ao afastamento do prefeito, por obstrução da Justiça. E pode ensejar até um pedido de prisão preventiva de Zenaldo, devido à suposta tentativa de destruição das provas de possíveis irregularidades.
Outro advogado concorda. Segundo ele, é crime, tanto se eram falsas as informações dos empenhos originais, quanto se são falsas as informações dos empenhos alterados. “Inicialmente, se cometeu falsidade ideológica e, por conseguinte, um crime para se beneficiar de algo. Pode ter-se cometido concussão, ou até prevaricação, lavagem de dinheiro, além de improbidade administrativa. Tem de saber o que se fez com esse dinheiro. E se houver um grupo organizado praticando a fraude, pode ser também associação criminosa”, afirma. Para ele, o enquadramento correto depende muito das provas, mas considera que houve, no mínimo, falsidade ideológica. E diz que, a depender das investigações, o caso pode mesmo levar até à prisão preventiva e afastamento de Zenaldo, por obstrução da Justiça.
No entanto, é improvável que isso ocorra: o prefeito controla com mão de ferro a Câmara Municipal de Belém. E o Ministério Público, apesar das várias denúncias que já recebeu sobre supostas irregularidades em contratos e pagamentos da Prefeitura, insiste em se fingir de morto. E a pergunta é: qual o motivo desse comportamento do MP? É esse silêncio cúmplice das instituições que, aliás, explica a ousadia de Zenaldo, que agora até altera documentos oficiais à luz do dia, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo: é a certeza de impunidade. Sem freios, ele, como se diz, estupora a boca do balão e, no maior cinismo, até acusa de “fake news” os veículos de comunicação que denunciam os atos que pratica. Ontem mesmo, o prefeito distribuiu um vídeo nas redes sociais, no qual voltou a acusar o DIÁRIO de mentir. No vídeo, até exibiu as Notas de Empenho alteradas, “esquecendo-se”, é claro, de mostrar as originais. Mas diversos meios meios de comunicação mostram hoje o que Zenaldo tenta esconder. Porque é esse, afinal, o papel da imprensa: democratizar a informação, levando à sociedade aquilo que os todo-poderosos de plantão buscam varrer para debaixo do tapete.
Por Ana Célia Pinheiro