O Ministério Público de Contas do Pará (MPC-PA) pediu ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) o bloqueio de bens do ex-superintendente do Sistema Penal, Michel Mendes Durans da Silva. O pedido do MPC foi motivado por um escândalo cabeludo: a compra de quase 94 mil peças de uniformes prisionais, cuja dispensa de licitação, assinatura do contrato, pagamento e entrega da mercadoria teriam sido realizados em apenas um dia, às vésperas das eleições do ano passado.
Segundo o MPC, há fortes indícios de que essas roupas nunca foram entregues na totalidade, o que pode ter lesado os cofres públicos em R$ 3 milhões. O MPC não descarta a possibilidade de que parte desse dinheiro tenha sido usado “para financiamento de campanhas eleitorais”. Hoje, Michel Durans é secretário parlamentar do deputado federal Cássio Andrade (PSB), em Brasília.
Além de Durans, o MPC também aponta como responsáveis pela suposta fraude a Organização Social (OS) Associação Polo Produtivo Pará, que gerencia a Fábrica Esperança e vendeu esses uniformes; e um então funcionário da Superintendência do Sistema Penal (Susipe), Carlos Carvalho, que teria cadastrado o recebimento do material.
A representação é assinada pelo procurador Patrick Bezerra Mesquita, da 5ª Procuradoria do MPC. Ele pede que o TCE desconsidere a personalidade jurídica da OS e que o então diretor-geral dela, Marcos Wagner Fonseca Lopes, também responda pelas acusações. E quer que Wagner, Durans, Carlos Carvalho e a OS tenham os bens bloqueados em até R$ 2,833 milhões.
A indisponibilidade cautelar de bens por até um ano, nas denúncias em apuração pelo TCE, está prevista no artigo 89, inciso II, da Lei Orgânica do tribunal, para garantir o ressarcimento aos cofres públicos. No entanto, não se tem notícia de que já tenha sido utilizada.
Outros pedidos do MPC são para que o TCE realize uma inspeção para apurar a denúncia, e que converta a investigação em Tomada de Contas Especial, caso detectado o superfaturamento e o prejuízo ao erário. Se isso ocorrer, os acusados, se condenados, poderão ser punidos com a inabilitação para o exercício de cargos comissionados ou funções de confiança, na administração pública estadual, por até 5 anos; e com a declaração de inidoneidade para contratar com o poder público, por até 5 anos.
Ao longo da investigação será analisado se há “justa causa” para que o Governo abra um processo de desqualificação da OS. A representação foi encaminhada ao TCE no último 27.
Segundo o procurador, tudo começou com uma representação encaminhada ao MPC, em fevereiro, pela Auditoria Geral do Estado (AGE). Ao avaliar o caso, ele constatou que “saltam aos olhos robustos indícios reveladores de superfaturamento” na compra dos 93.736 uniformes (camisas, camisetas, calças e bermudas), por R$ 3 milhões. Isso porque, embora tenham sido pagos, “não se tem qualquer prova ou notícia da sua entrega física integral”.
No entanto, segundo a nova administração da Susipe, eles foram cadastrados no Sistema Integrado de Materiais e Serviços (SIMAS) como se tivessem sido entregues, pela senha correspondente ao funcionário Carlos Carvalho.
Provas já coletadas sugerem a possibilidade de desvio de recursos
Na representação ao TCE, Patrick Mesquita observa que as divergências entre os números inseridos no SIMAS e aquilo que foi encontrado no almoxarifado da Susipe (apenas 5 mil peças de uniformes) até que poderiam ser atribuídas à má gestão de estoques, o que já exigiria “severas reprimendas” do TCE. No entanto, as provas já coletadas sugerem é a possibilidade de desvio de recursos.
“Em verdade, chama a atenção o fato de um contrato no valor de R$ 3.000.000,00, referente a mais de 90 mil itens, ter sido formalizado, empenhado, liquidado e pago em um só dia, praticando-se todos os atos necessários à sua perfectibilização na data de 04 de outubro de 2018, curiosamente em agudo período eleitoral, às vésperas do primeiro turno das eleições”, escreveu.
Tão ou mais estranho é que a solicitação para a compra desses uniformes veio da Casa Civil do Governo do Estado. Além disso, a solicitação é de 3 de outubro, apenas um dia antes de todo o processo recorde de contratação, recebimento e pagamento do material. E mais: a fase inicial da cotação de preço dos uniformes, através de contratos administrativos semelhantes, só foi concluída às 13h09m do dia 4.
ATOS
E mesmo assim, comenta o procurador, a Susipe produziu, naquele mesmo dia, “uma miríade de atos administrativos, e conseguiu consultar mais três potenciais fornecedores, e produziu a partir deles demonstrativo de valores que, embora datado do dia 05/10/2018, é posicionado no procedimento de compra como sendo contemporâneo a todos os atos feitos no dia 04/10/2018. Tal diferença já revelaria, ou mero equívoco de datação, ou erro na montagem fictícia do processo de contratação. O quadro fático aponta para a segunda alternativa”.
O problema, explica Patrick, é que, “por mais qualificado e eficiente que seja o quadro de servidores da Susipe”, é humanamente impossível que tenha conseguido conferir, em apenas um dia, o recebimento de 93.736 peças de uniformes. Além disso, também é inacreditável que a Fábrica Esperança tenha produzido esse mar de roupas, em apenas poucas horas. “Ora, levando-se em consideração uma boa capacidade produtiva de mil peças por dia, que é a auto-atribuída à Fábrica Esperança em matéria jornalística, para o cumprimento integral do contrato levar-se-iam três meses de intensivos trabalhos”, argumenta.
RISÍVEL
Para o procurador, “a inexecução contratual, com superfaturamento, é evidente”. Mas como se tudo isso não bastasse, há outro fato que chega a ser até risível, segundo ele: é que o parecer jurídico em favor da dispensa licitatória que beneficiou a Fábrica Esperança foi assinado por uma advogada da própria entidade, Melina Manuella Rodrigues Megale.
“Ora, é risível que uma Secretaria de Estado utilize do parecer jurídico da entidade contratada para respaldar juridicamente a dispensa de licitação, o que demonstra às escancaras a captura do setor administrativo da Susipe por interesses da contratada, e reforça as suspeitas de conluio que gritam dos autos”, escreveu.
Segundo ele, o “gravíssimo” conjunto de irregularidades sugere não apenas um acerto entre agentes públicos e a OS, mas, principalmente, o superfaturamento do contrato. Diz, ainda, que a conclusão a que se chega, ao examinar os autos processuais é que essa OS “parece ter funcionado, em verdade, como instrumento de vilipêndio dos cofres públicos, de modo a favorecer interesses não republicanos”. O caso, a seu ver, também revela “evidente ato de improbidade administrativa”.
Susipe pagou mais de R$ 10 milhões à Organização Social
Segundo o portal estadual da Transparência, só no ano eleitoral de 2018, o Governo Jatene pagou à Associação Polo Produtivo do Pará mais de R$ 16,2 milhões. Desse total, mais de R$ 10 milhões vieram da Susipe, no maior volume de recursos pagos pela instituição a essa OS, nos últimos cinco anos.
Em 2017, esses pagamentos haviam ficado em R$ 6,2 milhões. Mas a média de pagamentos, entre 2014 e 2017, foi inferior a R$ 5,7 milhões, na quase totalidade para o contrato de gestão da Fábrica Esperança.
Outro fato que chama atenção é que, em janeiro deste ano, a Susipe contabilizava 19.224 detentos nas penitenciárias paraenses, o que torna ainda mais intrigante a compra dessas 94 mil peças de uniformes prisionais. O caso é alvo de investigações pela Susipe, AGE e Ministério Público Estadual (MP-PA). Na Susipe, a apuração administrativa começou a pedido da Procuradoria Jurídica e os indícios de irregularidades foram comunicados ao MP-PA, que já possuía uma investigação em andamento.
OFÍCIO
No ofício enviado ao MP-PA, o novo superintendente da Susipe, Jarbas Vasconcelos, informou que o almoxarifado “não recebeu fisicamente o quantitativo adquirido”, apesar da inserção de informações, no SIMAS, dando conta do recebimento dos uniformes e da liquidação da Nota Fiscal 590, emitida em 04/10/2018, para pagamento do serviço. E
Ele também disse ter ficado surpreso “com um contrato de valor considerável realizado em um único dia, entre solicitação, despacho autorizando, empenho, recebimento e liquidação de Nota Fiscal”. Jarbas também comunicou o fato ao auditor-geral do Estado, Giussepp Mendes, que instaurou uma investigação, em 17 de fevereiro.
DENÚNCIA SOBRE A TRANSAÇÃO
Em outubro do ano passado, a Impresa denunciou a compra irregular desses uniformes. Vários fatos indicavam a possibilidade de que o material nem tivesse sido entregue e que o dinheiro tivesse sido desviado para uso eleitoral. Entre eles, o fato de os recursos terem sido sacados na quinta-feira que antecedeu o primeiro turno das eleições.
O empenho da transação, ao qual o jornal teve acesso, também continha várias estranhezas. Além dos milhares de uniformes que a OS se comprometera a confeccionar, não havia preços unitários e os valores dos lotes de peças eram redondos.
E mais: segundo a própria Susipe, até agosto do ano passado o Pará possuía 856 detentas. No entanto, foram compradas, para essas mulheres, 13.594 calças, 13.600 camisas de algodão e 13.610 bermudas, o que daria 15 calças, 15 camisas e 15 bermudas para cada.
Quem fechou a transação foi Michell Durans, que assumira o comando da Susipe em junho, por indicação do então deputado estadual Cássio Andrade (PSB).
A ascensão de Durans à Susipe (que gastou, no ano passado, quase R$ 360 milhões) teria sido parte do acordo entre o PSB e o então governador Simão Jatene, para que o partido apoiasse a candidatura de Márcio Miranda ao governo.
Na época, devido a uma inércia de quase 8 anos, o Sistema Penal enfrentava uma crise sem precedentes. E continuou assim, sob a batuta de Durans.
Hoje, Cássio Andrade se elegeu deputado federal e Durans ocupa cargo de confiança no gabinete dele: é secretário parlamentar e recebe cerca de R$ 2 mil por mês, uma remuneração bem distante dos R$ 27.550,61 brutos que recebia na Susipe.
(Ana Célia Pinheiro)