Não sei se o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que tem se comportado com muita correção na CPI da Covid, propôs a convocação de Jair Bolsonaro como uma espécie de “fogo de encontro” — isto é, para fazer frente, então, à de nove governadores. Uma coisa eu sei: embora não esteja escrito em lugar nenhum que é proibido convocar presidentes, a interdição se dá pela ausência. Vou explicar. Mas é preciso dizer de cara: também a dos governadores é ilegal.
Comecemos pelo Artigo 146 do Regimento Interno do Senado: “Art. 146. Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito sobre matérias pertinentes: I – à Câmara dos Deputados; II – às atribuições do Poder Judiciário; III – aos Estados.”.
Ainda que se possa afirmar que se quer saber a destinação de recursos federais destinados a Estados, é evidente que a comissão estaria investigando aquilo que o Regimento Interno diz que não pode ser investigado. Não naquela instância.
Tanto pior quando ficamos sabendo que o critério que orientou a seleção dos nove governadores foi a existência de operações da Polícia Federal em seus respectivos Estados. Bem, então se poderia dizer que os senhores chefes dos Executivos estaduais chegariam à comissão na condição de investigados? Perda de tempo e de foco. Se chamados na condição de testemunhas, não poderiam se ausentar, é isso? E se o fizessem? A CPI expediria um mandado de condução coercitiva? Ora.
Parece-me evidente que, se recorrerem ao STF, os governadores terão uma liminar para não comparecer. Cumpre que a comissão não vá além de suas sandálias, mormente quando o viés que determinou a escolha é, obviamente, o investigativo.
Ademais, como se sabe, tentar conquistar o coração de bolsonaristas é tarefa inútil. Não será por isso que eles vão reconhecer a isenção técnica da apuração.
Lembro as palavras de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, por ocasião da criação da CPI: “Corroborando essa tese, com base também em parecer da Advocacia-Geral do Senado, esclareço que são investigáveis todos os fatos que possam ser objeto de legislação, de deliberação, de controle ou de fiscalização por parte do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Congresso Nacional, o que, a contrário senso, implica que estão excluídos do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes Federados – disse Pacheco, antes de determinar que os líderes já podem indicar o os membros para a CPI da Covid.”
A fiscalização da aplicação de recursos por governadores, pouco importa a origem, não é de competência do Congresso. Ponto final. Faz sentido que o governador do Amazonas, por exemplo, seja chamado a depor? Faz. Mas não para investigar gastos. Seria útil ter seu testemunho sobre a crise de oxigênio no Estado.
Em novembro de 2012, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar a mandado de segurança impetrado pelo então governador de Goiás, Marconi Perillo, que havia sido convocado para a chamada “CPI do Cachoeira. Escreveu o ministro com acerto:
“Em um primeiro exame, a interpretação sistemática do Texto Maior conduz a afastar-se a possibilidade de comissão parlamentar de inquérito, atuando com os poderes inerentes aos órgãos do Judiciário, vir a convocar, quer como testemunha, quer como investigado, Governador. Os estados, formando a união indissolúvel referida no artigo 1º da Constituição Federal, gozam de autonomia, e esta apenas é flexibilizada mediante preceito da própria Carta de 1988”.
E JAIR BOLSONARO?
Randolfe apresentou um requerimento para o depoimento de Jair Bolsonaro. É claro que parte considerável do que se apura na CPI constitui atos do seu governo. Mas entendo que estaria caracterizado, aí sim, a interferência de um Poder — no caso, o Legislativo — em outro: o Executivo.
Prevê o Artigo 50 da Constituição: “A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada.”
Como se nota, nada há sobre a convocação do presidente. E, nesse caso, não havendo, então não pode. O poder público — de que a CPI é expressão — faz o que lei prevê e não o que ela não proíbe.
Se o chefe do Executivo Federal não pode depor numa CPI, também não podem os governadores e prefeitos, como lembrou Marco Aurélio, com base no Artigo 1º da Constituição:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos (…)”:
Somos uma “união indissolúvel” em uma “República Federativa”. Há unidade, mas também a independência dos entes federados. E isso significa que a investigação, do âmbito legislativo, dos atos de governadores e prefeitos deve se dar, respectivamente, nas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores.
ENCERRO
“Ah, se é para chamar os governadores, então vamos chamar Bolsonaro também”. Estar-se-ia, é verdade, em busca de um critério de proporcionalidade, mas que nada tem a ver com a ordem legal. Todas as convocações são ilegais.
Não há como aprovar a convocação de Bolsonaro. E a dos governadores tem de ser cancelada. Em nome das regras do jogo, cada um deles deveria entrar com um mandado de segurança para que se cumpra o preceito e para que a CPI não se perca em descaminhos, como querem os governistas que lá estão.
Embora não tenha sido convocado, eu até gostaria de assistir a um embate entre João Doria e o quarteto governista da CPI: Eduardo Girão (Podemos-CE), Jorginho Mello (PL-SC), Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Marcos Rogério (DEM-RO).
A primeira e eloquente questão seria levar a público quantas doses de vacinas foram aplicadas em seus respectivos Estado e qual a origem do imunizante. Não é preciso muito esforço para desmoralizar esses valentes.
Por Reinaldo Azevedo | UOL