O Ministério Público Estadual (MP-PA) abriu inquérito civil para investigar a compra de 4,6 milhões de luvas pela Prefeitura de Belém, para os servidores da rede municipal de Saúde, em decorrência da pandemia de Covid-19. O caso foi denunciado em reportagem do Diário do Pará, no último 5 de julho, levando a vereadora Nazaré Lima, do PSOL, a protocolar um pedido de investigação no MP-PA. Os 4,6 milhões de luvas representam 3 vezes a população de Belém, que é inferior a 1,5 milhão de habitantes.
A empresa contratada para fornecer esses produtos foi alvo de uma operação da Polícia Federal, por suspeita de integrar uma organização criminosa que teria superfaturado Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) em até 400 por cento, em contratos com prefeituras do estado do Maranhão. O dono da empresa e 3 secretários de Saúde chegaram a ser presos.
O inquérito civil foi aberto, no último dia 26, pelo promotor de Justiça Domingos Sávio Campos, da 3ª Promotoria de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa do MP-PA, que já solicitou informações à Prefeitura sobre o caso. Na reportagem de 5 de julho, o DIÁRIO mostrou os indícios de irregularidades na compra de R$ 12,5 milhões em EPIs pelo prefeito Zenaldo Coutinho, com dispensa de licitação, em função da pandemia.
Há sinais de superfaturamento de preços, pagamento antecipado e, principalmente, de superfaturamento quantitativo (quando o Poder Público compra enorme volume de um produto, muito acima de sua real necessidade, e a empresa só entrega uma parte). O contrato mais espantoso foi justamente o da empresa J J da Silva & Santos Ltda: 4,6 milhões de unidades de luvas de látex para procedimentos não cirúrgicos, a um custo total de R$ 1,748 milhão. O contrato foi assinado no último 19 de maio, pela Secretaria Municipal de Saúde (Sesma), e teria vigência de 6 meses.
Mas em 8 de julho, ou 3 dias depois da reportagem do DIÁRIO, o secretário municipal de Saúde, Sérgio de Amorim Figueiredo, rescindiu unilateralmente e às pressas o contrato com a empresa. Tão às pressas que na rescisão (publicada logo no Diário Oficial do dia 9) ele até cita um certo “parágrafo terceiro” da cláusula décima sexta do contrato, que, simplesmente, não existe.
NOTA
A Sesma também anulou a Nota de Empenho em favor da empresa e não consta que ela tenha recebido pagamentos. Mas a denúncia da vereadora Nazaré Lima sobre as possíveis irregularidades na compra desses R$ 12,5 milhões em EPIs foi dividida entre várias promotorias, que também já investigam a transação, embora ainda não tenham aberto procedimentos.
A Prefeitura de Belém também assinou contratos para a compra de 980 mil toucas descartáveis, o que equivale a quase uma para cada adulto de Belém (1.042 milhão de pessoas). Comprou também 900 mil aventais descartáveis que, assim como as toucas, são usados principalmente por médicos e enfermeiros, em cirurgias e atendimentos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs); além de 8.250 macacões (aquela roupa que lembra os filmes de ficção científica), que são utilizados como alternativa aos aventais, pelos poucos médicos e enfermeiros que circulam nas UTIs.
Comprou, ainda, 491 mil máscaras descartáveis e 43.100 do tipo PFF2, as de mais alta proteção, reservadas para situações de alto risco, como intubações de pacientes da Covid-19. A Sesma possui cerca de 8 mil servidores. Deles, pouco mais de 3 mil atuam diretamente no atendimento à população.
O superfaturamento quantitativo é uma forma mais “sofisticada” de superfaturamento. É muito mais difícil de provar e ainda rende ao gestor público a fama de “honesto”, já que a compra de grandes quantidades joga os preços, aparentemente, para níveis muito baixos. Só que é tudo ilusão, já que apenas a metade (ou nem isso) dos produtos adquiridos será de fato entregue. É difícil encontrar indícios desses dois tipos de superfaturamento numa mesma operação. Mas até isso pode existir na compra dessas EPIs, pela Prefeitura de Belém.
Os 4,6 milhões de luvas saíram a 38 centavos a unidade, contra os 21 centavos registrados pelo Banco de Preços do Governo do Estado, em 14 de fevereiro deste ano. Das 43.100 máscaras PFF2, 3.100 chegaram a custar R$ 29,90 cada, em 23 de abril. Mas, no dia anterior, o Hospital de Clínicas Gaspar Viana comprara 2 mil máscaras do mesmo tipo por R$ 21,00 a unidade. E também no dia 22, a própria Sesma comprara 40 mil dessas máscaras a R$ 23,00 cada. Já a maioria das 491 mil máscaras descartáveis foi comprada a R$ 1,70 a unidade, contra o R$ 1,20 pago pela Polícia Militar do Estado, apesar da quantidade 16 vezes menor (30 mil).
Em denúncia que protocolou no MP-PA e na Diretoria de Combate à Corrupção (Decor) da Polícia Civil, sobre a compra desses 4,6 milhões de luvas, a cidadã Cleide Barra D’Assunção faz um cálculo interessante. Ela lembra que entre a data de assinatura do contrato (19 de maio) e 30 de julho foram confirmados 85.469 casos de Covid-19, em todo o Pará.
Assim, mesmo que fossem usados 2 pares de luvas em cada atendimento, isso daria 341.876 unidades, ou apenas 7,4% da quantidade que a Prefeitura pretendia adquirir apenas para Belém. O mais grave, porém, é que, no auge da pandemia, a população da cidade dava com a cara na porta de UPAs e prontos socorros fechados, e faltavam máscaras, aventais e até água e sabão para os profissionais de Saúde. Foi preciso protestar nas ruas e até recorrer à Justiça para que Zenaldo fosse obrigado a garantir EPIs.
Pedido de providências em três promotorias
Em nota, a Assessoria de Comunicação do MP-PA informou que o pedido de providências da vereadora Nazaré Lima foi desmembrado em 3, por envolver contratos e empresas diferentes. O caso das luvas ficou com o promotor Domingos Sávio Campos, da 3ª Promotoria de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa; o das máscaras, com o promotor Evandro de Aguiar Ribeiro, da 6ª Promotoria; o das toucas, com o promotor Sandro Ramos Chermont, da 5ª.
Em cada uma delas, o pedido deu entrada na mesma data: 21 de julho. Mas o único que já abriu procedimento (um inquérito civil) foi Domingos Sávio, apesar da “grande quantidade de expedientes com pedidos de providências que precisam ser analisados”, um trabalho realizado “de acordo com a ordem de chegada dos protocolos”.
Na 5ª Promotoria, o promotor ainda aguarda o encaminhamento de informações pelo secretário municipal de Saúde. Na 6ª, o promotor diz que “adotará todas as providências para a cabal apuração dos fatos”, mas que “no momento, o pedido é uma Notícia de Fato, pois atualmente tramitam muitos expedientes na Promotoria, sendo necessário um tempo para a avaliação de cada caso e as possíveis providências de direito necessárias”.
Após denúncias
l O contrato das luvas não é o primeiro que os tucanos desfazem, depois de uma reportagem do DIÁRIO. Em 2015, o DIÁRIO mostrou que o então governador Simão Jatene entregara um contrato de R$ 200 milhões, para cursos volantes de inglês aos alunos da rede pública, a uma empresa cujo dono era acusado, na Justiça, de comandar uma quadrilha de fraudadores de seguros de acidentes de trânsito, tendo sido até preso, em 2008.
Com as reportagens do jornal, Jatene desfez o contrato.
l E em 2016, menos de um ano depois das reportagens, o dono da empresa BR7, Alberto Pereira de Souza Júnior, voltou a ser preso, agora pela Polícia Federal, junto com outros integrantes da suposta quadrilha, que estaria aplicando golpes semelhantes em várias prefeituras paraenses, como também denunciado pelo jornal.
l Em 2017, Jatene teve de recuar mais uma vez: ele tentou entregar o contrato do BRT Metropolitano à construtora Paulitec, a queridinha dos tucanos (que, aliás, é quem executa o interminável BRT de Zenaldo, na Augusto Montenegro). A empresa teria sido a única, em todo o mundo, a comparecer àquela licitação de R$ 530 milhões. Mas o DIÁRIO denunciou, Jatene teve de realizar uma nova licitação, apareceram empresas até da China – e a Paulitec perdeu a disputa.
Empresa é suspeita de fraude no Maranhão
O prefeito Zenaldo Coutinho parece ter fixação em empresas enroladas. A J J da Silva & Santos Ltda, que ele contratou para fornecer 4,6 milhões de unidades de luvas à rede municipal de Saúde, está no centro de um escândalo no Maranhão. Ela é suspeita de integrar uma organização criminosa que fraudou licitações e superfaturou em até 400 por cento EPIs (como essas luvas), adquiridos por prefeituras daquele estado.
Ela teria até simulado a venda de ventiladores pulmonares, que as prefeituras pagaram, mas não receberam. No último 5 de agosto, o empresário Josimiel Jorge da Silva, dono da empresa, chegou a ser preso pela Polícia Federal, durante a operação Falsa Esperança, que desbaratou a suposta quadrilha.
Segundo a PF, a J J da Silva & Santos (cujo nome de fantasia é Ecosolar), não possui nenhum empregado, nunca atuou no ramo médico-hospitalar e apenas comercializa acessórios para a instalação de aparelhos de ar condicionado e de energia solar.
No entanto, registrou na Receita Federal 69 atividades. Entre elas, confecção de roupas, impressão de materiais publicitários, captação, tratamento e distribuição de água, construção de redes de distribuição de energia, lavagem e lubrificação de veículos, comércio varejista de alimentos e de materiais de construção, transporte de passageiros, serviços de arquitetura e de segurança privada, limpeza de prédios e de casas, e até produção musical.
No final de junho, o blog Maramais (MA) ficou sabendo que a empresa ganhara um lote superior a R$ 2 milhões, em uma licitação da Prefeitura de São José de Ribamar, para a locação de veículos. Aí, foi até o endereço dela, no município de Paço do Lumiar. “Estivemos no local, com a intenção de alugar um único veículo e verificar a qualidade do serviço oferecido para os ribamarenses. Chegando no estabelecimento, que funciona em uma pequena sala com apenas uma porta aberta, o funcionário disse desconhecer o serviço de locação de veículos, e que nunca alugou um único veículo naquele endereço. No local, apenas peças de ar condicionado e um banner oferecendo o serviço de geração de energia solar”, escreveu o blogueiro.
OPERAÇÃO
O local fotografado por ele é o mesmo em que ocorreu a operação da PF, como mostram fotografias em vários sites. O capital da J J da Silva& Santos é de apenas R$ 310 mil. Na licença ambiental concedida pela Prefeitura de Paço do Lumiar, com validade até dezembro deste ano, consta que a sua principal atividade é a “venda, instalação e manutenção de sistemas de centrais de ar condicionado, ventilação e refrigeração”.
Por Ana Célia Pinheiro