Respiradores comprados por Zenaldo podem ser fantasmas.

Há fortes indícios de que os respiradores pulmonares que o prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, comprou da GM Serviços Comércio e Representação podem nem existir, ou estarem em situação tão irregular que nem poderiam ter sido comercializados. A imprensa teve acesso a documentos explosivos sobre o caso: as três Notas Fiscais da venda desses ventiladores e um ofício enviado pela Secretaria de Estado da Fazenda (SEFA), no último 2 de julho, à Diretoria de Combate à Corrupção (Decor), da Polícia Civil, que investiga a transação. No ofício, a SEFA afirma que não há registro da entrada desses equipamentos na GM Serviços e que não há como informar se eles ao menos entraram no Pará.

Nas notas fiscais, a empresa figura como a fabricante desses ventiladores, que são de origem chinesa, o que pode até configurar descaminho ou sonegação fiscal, segundo auditores fiscais. Como você viu em denúncias feito pela imprensa em junho, Zenaldo comprou esses ventiladores, em março último, sem licitação e sem contrato, para atender os pacientes da Covid-19.

Segundo as Notas de Empenho originais que estavam no portal da Transparência, dois deles custaram R$ 260 mil, ou mais que o dobro do que foi pago por governos e prefeituras de vários pontos do País. O custo exorbitante desses equipamentos também constava no Mapa Consolidado das despesas da Secretaria Municipal de Saúde (Sesma), decorrentes da pandemia. Mas depois que o caso vazou na internet, a Prefeitura deu sumiço no Mapa e alterou as Notas de Empenho.

Ela inseriu mais equipamentos nesses documentos, fazendo com que o preço dos ventiladores caísse para R$ 65 mil. No entanto, elas apresentam informações não verdadeiras e tantos outros problemas, que acabam por levantar suspeitas ainda mais graves.

Uma das informações incorretas é o Código Fiscal em Operações e Prestações (CFOP) que a GM Serviços usou nas Notas Fiscais: o 5101. O problema é que esse número significa que a empresa vendeu uma mercadoria que ela mesma produziu ou industrializou, como informam sites de ciências contábeis e auditores fiscais. Mas os ventiladores que a GM Serviços vendeu à Prefeitura são da marca Mindray, uma das maiores fabricantes mundiais de equipamentos hospitalares. Eles não são nem mesmo produzidos no Brasil: a fábrica fica na China, no Leste da Ásia. E a GM Serviços, aliás, nem mesmo é a Representante da Mindray no Pará e Amapá, como informou a filial da empresa, no estado de São Paulo.

Outro problema é o Código da Situação Tributária (CST). Ele indica a origem do produto e a alíquota devida de ICMS. É um código de três dígitos: o primeiro, se for zero, significa que a mercadoria é nacional; se for 1, que é estrangeira. Já os outros dois dígitos indicam os tributos. No entanto, a GM Serviços usou como CST o número 0102. Isso levanta a hipótese de que tenha usado o primeiro zero para indicar que os ventiladores são nacionais.

Já o 102 teria saído do CSOSN, o código utilizado pelas empresas optantes do Simples, no qual o 102 significa transações que não permitem indicar a alíquota de ICMS. Auditores fiscais disseram ao DIÁRIO que a hipótese de junção desses dois códigos pode ser verdadeira. Segundo eles, trata-se de uma irregularidade formal passível de retificação, embora “a coisa possa mudar de figura, se restar evidenciado dolo, com o propósito de burlar o fisco”.

ALARDE

As Notas Fiscais também dizem que esses ventiladores foram vendidos na tarde de 31 de março, mas que já no dia seguinte, 1º de abril, foram entregues à Sesma, segundo o Atesto de uma funcionária do Departamento de Urgência e Emergência (DEUE), Cláudia Matos. Mas como é possível que eles tenham chegado tão rápido, da China ao Pará? Ou eles já estavam no Pará? Mas se a SEFA afirma que não há registro da entrada desses equipamentos na GM Serviços, onde é que eles estavam e como foi que a empresa os obteve? Ainda segundo as Notas Fiscais, o frete foi CIF, ou seja, já estava embutido no preço desses produtos. Mesmo assim, eles teriam custado apenas R$ 65 mil, e numa época (abril/maio) em que países do mundo inteiro travavam uma verdadeira guerra por esses equipamentos, com os Estados Unidos.

Além disso, as Notas Fiscais (e também as Notas de Empenho) dizem apenas que esses ventiladores são da marca Mindray. Não há qualquer informação sobre as características deles (modelos, recursos que possuem) ou sobre o número de série. Segundo um advogado, isso faz com que a Prefeitura não tenha nem como comprovar quais os ventiladores que teria adquirido. “Como você vai dizer que a Nota Fiscal é daquele equipamento, se não tem o número de série?”, indaga. E observa: “O empenho garante o pagamento e a Nota Fiscal garante a entrega do equipamento. Posso empenhar o pagamento de um computador, por exemplo, de série 1,2,3. Mas na hora que entregar, tenho de fazer o Atesto da Nota, e nele tem de constar o mesmo número de série e a descrição dele. Se não há isso, não tem como provar que é o equipamento pelo qual se pagou”. E isso sem falar na garantia desses ventiladores, para a qual também é preciso o número de série. Ou eles não têm garantia?.

Tão ou mais problemático é que essas Notas Fiscais foram expedidas um dia antes das Notas de Empenho, datadas de 1º de abril. Só que a Lei 4.320/64 proíbe que o Poder Público realize qualquer gasto sem antes empenhá-lo, ou seja, sem antes reservar dinheiro, no seu orçamento, para o pagamento. É dessa reserva orçamentária que nasce a Nota de Empenho, que identifica a empresa que será paga por aquela mercadoria ou serviço. O documento é uma garantia, para o fornecedor, de que ele receberá o dinheiro que lhe é devido, desde que entregue um produto com as características que prometeu. É por isso que a emissão dessas Notas Fiscais antes das Notas de Empenho, além de irregular, também cria uma situação absurda na venda desses ventiladores pela GM Serviços: é como se a empresa tivesse resolvido vender essas mercadorias à Prefeitura, mesmo sem ter qualquer garantia de que seria paga.

Outro fato estranho é que nem no Google se consegue encontrar qualquer notícia sobre a compra desses respiradores. E isso apesar de Zenaldo, todo santo dia, alardear em suas lives até um parafuso que compre, para combater a Covid-19. Na verdade, o prefeito só veio a falar sobre esses equipamentos depois que a imprensa começou a investigar esse “causo”. Segundo o portal da “Transparência” do prefeito, não houve nem mesmo um contrato para a aquisição desses ventiladores: apenas um “Termo de Reconhecimento de Dívida 07/2020”, que a reportagem ainda não conseguiu localizar, no Diário Oficial do Município. Eles custaram, ao todo, R$ 740.624,00 e que estão sendo pagos às prestações.

OUTRAS COMPRAS SEM LICITAÇÃO

l Neste ano eleitoral, além dos ventiladores pulmonares, Zenaldo também comprou da GM Serviços, sem licitação e por R$ 170 mil, dois aparelhos de ultrassom. Comprou, ainda, um esterilizador de peróxido de hidrogênio, por R$ 298.900,00, através do Pregão 07/2020, realizado pela Sesma. Ela também foi contemplada com uma inexigibilidade licitatória de R$ 255 mil, para a confecção de 150 mil máscaras descartáveis, para os profissionais de saúde da rede municipal. No portal da Transparência, não há empenhos em favor dela, entre 2013 e 2018. No ano passado, há apenas um, de R$ 60 mil. Neste ano, porém, os empenhos em favor da empresa somam mais de R$ 1,745 milhão, 66% sem licitação.

De cafezinhos a equipamentos hospitalares

A GM Serviços (CNPJ: 15.564.580/0001-17) foi aberta em maio de 2012, com o nome empresarial de M F Martin – ME. Ficava em um ponto comercial na Cidade Nova IV, em Ananindeua, e tinha um nome de fantasia revelador sobre o que fazia: “Coffe Cake Doceria”. Ao longo dos anos, porém, sofreu várias alterações societárias, até ser transferida, em dezembro de 2017, à empresária Genny Missora Yamada. Seu capital social é de R$ 400 mil. A principal atividade, declarada à Junta Comercial do Pará (Jucepa) e à Receita Federal, é o comércio atacadista de instrumentos e materiais médicos, cirúrgicos, hospitalares e laboratoriais.

Mas ela possui um leque de 35 atividades, que incluem a confecção de roupas profissionais, impressão de materiais publicitários, reparação e manutenção de aparelhos eletromédicos e eletroterapêuticos, lavanderia hospitalare outros.

São tantos e diferentes ramos, muitos que requerem autorização, que a Receita Federal até escreveu, ao lado de algumas dessas atividades, que a empresa estava “dispensada” de alvará, mas que ela, Receita, não tem “qualquer responsabilidade” em relação a isso. Mas 3 meses antes de vender esses ventiladores à Prefeitura de Belém, a empresa obteve dispensa de licenciamento ambiental “por tratar-se de uma sala administrativa”, cuja atividade fim “é apenas de serviços de fornecimento de uniformes(…)”, diz um documento do Departamento de Gestão Ambiental, da Secretaria de Meio Ambiente de Ananindeua.

Por Ana Célia Pinheiro