Com uma série de ações que podem resultar na perda de seus direitos políticos, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) será julgado pela Justiça Eleitoral com base em uma legislação de inelegibilidade que endureceu na última década.
Por um lado, a Lei da Ficha Limpa, sancionada em 2010 e aplicada pela primeira vez na eleição de 2012, aumentou as chances de se vetar a eleição de agentes políticos.
Por outro, o precedente aberto pelo caso do então deputado paranaense Fernando Francischini abriu a possibilidade até então inédita de se aplicar a inelegibilidade em resposta a ataques à lisura do processo eleitoral. Esse precedente pode complicar a vida do ex-mandatário.
Atualmente, Bolsonaro enfrenta ao menos 16 ações de investigação na Justiça Eleitoral que podem deixá-lo inelegível. Integrantes do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) querem acelerar a tramitação desses casos para analisá-los até o meio do ano, como publicou recentemente a Folha.
Relator das ações, o corregedor eleitoral Benedito Gonçalves, também ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), indicou a aliados querer acelerar o passo dos julgamentos por avaliar que esse tipo de instrumento acaba se arrastando em demasia.
Além disso, segundo pessoas próximas a ministros do TSE, os magistrados pretendem concluir a tarefa antes da aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, em maio, pois a saída dele resultará na entrada de Kassio Nunes Marques, indicado ao STF (Supremo Tribunal Federal) por Bolsonaro.
Entenda quais as possibilidades de inelegibilidade previstas na legislação e como isso pode afetar o caso do ex-presidente.
Quais são as causas de inelegibilidade previstas na legislação?
As hipóteses de inelegibilidade estão previstas na lei complementar nº 64, de 1990. A norma prevê 17 situações que inviabilizam a eleição de alguém.
Entre elas, estão condenação pela Justiça Eleitoral, transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político; condenação por órgão colegiado por atos de improbidade, desde que cumpridas determinadas condições, como a presença de dolo (intenção); e condenação por órgão colegiado de crimes previstos na Lei da Ficha Limpa, de 2010.
Além disso, estão elencadas dez hipóteses de inelegibilidade para o presidente e o vice-presidente da República, como o veto a membros do Ministério Público que não tenham se afastado nos seis meses anteriores ao pleito. Essas regras específicas para o chefe do Executivo não devem se aplicar a Bolsonaro.
No caso de quais crimes a Lei da Ficha Limpa prevê a inelegibilidade?
A punição está prevista para os seguintes crimes:
– contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público
– contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na Lei de Falências
– contra o meio ambiente e a saúde pública
– eleitorais, em caso de pena privativa de liberdade
– de abuso de autoridade, quando houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública
– lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores
– tráfico, racismo, tortura, terrorismo e crimes hediondos
– de redução à condição análoga à de escravo
– contra a vida e a dignidade sexual
– praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.
Por qual prazo o político fica inelegível caso se enquadre nos casos previstos na Legislação?
Por oito anos. A contagem varia de acordo com o enquadramento. No caso de crime eleitoral, por exemplo, o prazo vale para a eleição na qual o candidato concorreu e nas realizadas nos oito anos seguintes. No caso dos crimes previstos na Lei da Ficha Limpa, o prazo de oito anos é contado após o cumprimento da pena, e a inelegibilidade já vale após a condenação.
De que forma a Lei da Ficha Limpa endureceu a legislação sobre inelegibilidade?
Além de estender o prazo de inelegibilidade de 3 para 8 anos e incluir uma série de tipos penais entre os que barram um candidato, a Lei da Ficha Limpa trouxe uma novidade que facilitou muito a aplicação da pena, diz o advogado Fernando Neisser, membro fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político).
É que, antes da Lei da Ficha Limpa, ao analisar um possível abuso, a Justiça Eleitoral avaliava o seu potencial de mudar o resultado da eleição. Além de ser difícil de provar isso, a formulação na prática impedia a punição de candidatos que cometeram ilícitos, mas mesmo assim perderam a eleição.
Sancionada em 2010, porém, a nova legislação mudou esse quadro, ao determinar que a Justiça Eleitoral deve analisar a gravidade das circunstâncias do ato, independente do potencial dele de alterar o resultado da eleição. “Isso aumentou brutalmente as cassações por abuso de poder político e econômico no Brasil”, afirma Neisser.
Que parâmetro a Justiça Eleitoral usa para determinar a gravidade de um ato na eleição e considerá-lo abusivo?
Esses parâmetros têm sido modulados pela jurisprudência. Neisser cita três balizas usadas pelo TSE para analisar a gravidade: amplitude daquele ato abusivo (quantas pessoas podem ter sido afetadas); quão ligados à campanha do candidatos os atos estavam; e o peso moral da conduta.
O que mudou com o caso do então deputado estadual Fernando Francischini e como isso pode afetar o julgamento de eventual inelegibilidade de Bolsonaro?
O TSE decidiu em 2021 cassar o então deputado estadual paranaense Fernando Francischini, eleito pelo PSL, devido à publicação de vídeo no dia das eleições de 2018 em que ele afirmou que as urnas eletrônicas haviam sido fraudadas para impedir a votação de Bolsonaro.
A corte também determinou que o deputado ficaria inelegível por oito anos, contados a partir da data do pleito. A decisão foi um marco nos julgamentos de inelegibilidade pela caracterização do abuso de poder a partir do ataque à legitimidade do processo eleitoral, acusação presente em ações de investigação das quais o ex-presidente é alvo.
Embora a decisão tenha sido uma novidade, especialmente no contexto da desinformação sobre as urnas, tinha como referência o artigo 14º da Constituição, que fala em inelegibilidade para proteger “a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
Quais ações podem resultar na inelegibilidade de Bolsonaro?
Há ao menos 16 ações de investigação judicial eleitoral em trâmite no TSE que podem tornar Bolsonaro inelegível por oito anos a partir da última eleição. Dessas, duas têm como alvo principal os ataques ao processo eleitoral e às urnas.
Há ainda ações que tratam do uso da máquina pela campanha do ex-presidente às vésperas do pleito. São citados fatos como a liberação de parcela extra do auxílio de R$ 1.000 para caminhoneiros e taxistas, a confecção de milhões de cartões do Auxílio Brasil e o desvirtuamento de agendas oficiais, como a da comemoração do bicentenário da Independência do Brasil e a viagem para o funeral da rainha Elizabeth 2ª.
Qual dessas ações está em estágio mais avançado?
Das ações que tramitam no TSE, a mais avançada é uma apresentada pelo PDT. Ela aponta que Bolsonaro usou a estrutura do Palácio da Alvorada para a reunião com embaixadores em julho do ano passado na qual atacou a integridade do sistema eleitoral.
Na ocasião, o ex-presidente colocou em xeque a lisura das urnas com base em afirmações já desmentidas. O PDT aponta suposta prática de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação. O trâmite rápido da ação se deve ao foco único e à necessidade reduzida de produção de provas, uma vez que a reunião foi filmada e transmitida em canais oficiais.
O que afirma a defesa do ex-presidente?
Uma das linhas da defesa de Bolsonaro foi sustentar que as falas do evento foram feitas enquanto chefe de Estado e como ato de governo, tendo o objetivo de “dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”. Além disso, seus advogados alegam que o público-alvo do evento não eram eleitores, mas pessoas sem cidadania brasileira.
Se Bolsonaro for declarado inelegível, sua candidatura será automaticamente cassada?
Não. Ele pode pedir o registro da candidatura, que será analisada pelo TSE. Em 2018, por exemplo, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pediu o registro da candidatura mesmo estando preso em Curitiba. O registro foi alvo de 16 contestações de adversários e da Procuradoria-Geral Eleitoral e acabou sendo barrado pelo tribunal a pouco mais de um mês do primeiro turno.
O fato de Bolsonaro estar fora do país, nos EUA, muda algo no julgamento dos casos?
Não. Os casos seguem em tramitação, com manifestações feitas pela defesa do presidente.
Por ANGELA PINHO/ FOLHAPRESS