É incrível, mas verdadeiro: o prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho, acaba de comprar mais de 11 milhões de unidades de luvas descartáveis para os profissionais da rede municipal de Saúde. É mais do que toda a população do Pará, estimada em quase 8,7 milhões de pessoas, e 7 vezes a população de Belém, que é inferior a 1,5 milhão de habitantes.
A desculpa do prefeito é a pandemia de Covid-19. Só que a compra foi realizada agora em setembro, quando o número de casos confirmados, em todo o estado, apresenta grande redução, em relação ao pico da doença, que ocorreu em maio. Além disso, a Secretaria Municipal de Saúde (Sesma) possui cerca de 3 mil servidores que atendem diretamente a população. Isso significa 3.750 luvas para cada um, ou 1.250 por mês, já que o prazo contratual é de 3 meses.
A quantidade de luvas comprada por Zenaldo também representa 50 vezes o total de doentes já confirmados de Covid-19, em todo o Pará, e 309 vezes todos os casos de Belém, durante toda a pandemia.
Entre o começo de março e a noite do último dia 22, foram confirmados 224.302 casos da doença, em todo o Pará, sendo 36.402 em Belém, dizem os números da secretaria estadual de Saúde (Sespa). E mais: no pico da pandemia, em maio, as confirmações da doença atingiram 70.083 casos, contra os 4.606 deste mês de setembro, em todo o Pará. Ou seja: se, apesar da tendência de queda, a Covid-19 se mantivesse em 4.606 casos por mês, em todo o estado, as luvas de Zenaldo seriam suficientes para atender 2.442 vezes esse número de pacientes.
CONTRATOS
Ao todo, são 11,250 milhões de unidades de luvas de látex para procedimentos não cirúrgicos, que cus- tarão aos cofres públicos R$ 5,115 milhões. São 30 mil caixas, cada uma com
100 unidades, em tamanho pequeno; 17.500 caixas com 100 unidades de tamanho grande; e 65 mil caixas com 100 unidades de tamanho médio. A li- citação (Pregão Eletrônico 134/2020) foi realizada entre 28 de agosto e 4 de setembro. Os dois contratos foram assinados no último dia 18, pelo secretário municipal de Saúde, Sérgio de Amorim Figueredo.
Quem ganhou o maior, no valor de R$ 3,120 milhões, para as luvas de tamanho médio, foi a F Cardoso & Cia Ltda, uma empresa tradicional do mercado, sediada em Ananindeua. O outro contrato, no valor de R$ 1,995 milhão, para as luvas pequenas e grandes, ficou com a empresa JKL Investimentos S.A, sedia- da em Fortaleza, capital do Estado do Ceará.
R$ 12,5 milhões gastos em compra suspeita
Não é a primeira vez que Zenaldo adquire Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs), para os servidores municipais de Saúde, com indícios de irregularidades, sempre com a desculpa da pandemia.
Em 5 de julho, o Diário do Pará mostrou que o prefeito já havia comprado, sem licitação, R$ 12,5 milhões em EPIs sob a suspeitas de superfaturamento de preços, pagamento antecipado e, principalmente, superfaturamento quantitativo, que é quando o Poder Público compra um volume de produtos muito acima de sua real necessidade, para receber apenas uma parte daquilo que pagou.
Entre os casos apontados pelo DIÁRIO, naquela reportagem, estava a aquisição de 4,6 milhões de unidades de luvas de látex. Na época, a empresa beneficiada com um contrato de R$ 1,748 milhões, para
o fornecimento dessas luvas, foi a JJ da Silva & Santos, que viria a ser um dos alvos da operação Falsa Esperança, da Polícia Federal, por suspeita de integrar uma suposta organização criminosa que teria fraudado licitações e superfaturado EPIs em até 400 por cento, em contratos com prefeituras do estado do Maranhão. Em 5 de agosto, o dono da empresa, Josimiel Jorge da Silva, e três secretários municipais de Saúde chegaram a ser presos pela PF.
Além dos 4,6 milhões de luvas, o prefeito também já havia comprado 980 mil toucas descartáveis, o equivalente a quase uma para cada adulto de Belém (1.041 milhão de pessoas), além de 900 mil aventais descartáveis, usados por médicos e enfermeiros durante cirurgias e nos atendimentos aos pacientes das Unidades de Terapia
Intensiva (UTIs). Também comprou 8.250 macacões (aquelas roupas que lembram os filmes de ficção científica), utilizados como alternativa aos aventais pelos poucos médicos e enfermeiros que circulam nas UTIs. Adquiriu, ainda, 491 mil máscaras descartáveis, e 43.100 do tipo PFF2 (N95), as de mais alta proteção, reservadas para situações de alto risco profissional, como intubações de pacientes da Covid-19. Todos os contratos, à exceção das máscaras, tinham vigência de 6 meses.
Ou seja: todo esse volume de EPIs seria entregue nesse prazo. Em abril deste ano, segundo informações da própria SESMA, Belém possuía 125 leitos de UTI e 1.118 de Enfermaria. Nas UPAs, eram 90 leitos de observação.
INQUÉRITO
No entanto, em 8 de julho, ou 3 dias depois da primeira reportagem do DIÁRIO, a Sesma rescindiu, às pressas e unilateralmente, o contrato dos 4,6 milhões de luvas. Mesmo assim, em 26 de agosto, o promotor de Justiça Domingos Sávio Campos, da 3ª Promotoria de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa do MP-PA,instaurou inquérito civil, para apurar o caso. É que devido
à reportagem do jornal a vereadora Nazaré Lima, do PSOL, protocolou denúncia no MP-PA. Lá, a denúncia foi fatiada em 3. O caso das luvas ficou com Domingos Sávio. Já as investigações sobre as toucas e as máscaras ficaram com os promotores Sandro Ramos Chermont, da 5ª Promotoria, e Evandro de Aguiar Ribeiro, da 6ª. Os dois já pediram informações à SESMA, mas ainda não abriram procedimentos. Todos receberam as denúncias na mesma data: 21 de julho.
Um fato que chama atenção na quantidade de EPIs comprada por Zenaldo é que não se consegue encontrar nenhuma justificativa aritmética, para a necessidade desse volume de produtos. Nem no caso desses mais de 11 milhões de unidades de luvas, a mais impressionante dessas aquisições, há qualquer cálculo mostrando, por exemplo, o número diário de pacientes atendidos pelas equipes municipais de Saúde, e a relação atendimentos X quantidade de luvas. No portal da Transparência e no site do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM), os únicos números que aparecem na documentação são das quantidades de produtos a serem comprados.
A única pessoa que parece ter tido o bom senso de se preocupar com isso foi a cidadã Cleide Barra D’Assunção, que, após a primeira reportagem do DIÁRIO, denunciou a tentativa de compra daqueles 4,6 milhões de luvas ao MP- PA e à Diretoria de Combate à Corrupção (Decor) da Polícia Civil. Segundo ela, entre a data de assinatura daquele contrato (19 de maio) e 30 de julho, foram confirmados 85.469 casos de Covid-19, em todo o Pará. Assim, mesmo que fossem usados 2 pares de luvas em cada atendimento, isso daria 341.876 unidades, ou apenas 7,4% do total que a Prefeitura pretendia adquirir, apenas para Belém.
Vale lembrar que, no pico da pandemia, faltavam EPIs e até água com sabão para os trabalhadores municipais de Saúde. Eles tiveram de protestar nas ruas, e foi preciso até recorrer à Justiça para que o prefeito garantisse EPIs a esses servidores.
Irregularidade “sofisticada” dá fama de “honesto” ao gestor
O superfaturamento quantitativo é uma forma mais “sofisticada” de irregularidade. Mais difícil de provar, ele também rende ao gestor público a fama de “honesto”. É que a compra de grandes quantidades de um produto joga os preços unitários para níveis muito baixos, embora tudo não passe de ilusão, já que apenas a metade da mercadoria (ou nem isso) será entregue. É difícil encontrar indícios de superfaturamento de preços e de quantidades, em uma mesma operação.
Mas até isso existe nas compras de EPIs por Zenaldo. Os 4,6 milhões de luvas que ele tentou comprar da J J da Silva & Santos ficariam em 38 centavos a unidade. Já os 11 milhões de luvas que está comprando da F Cardoso e da JKL Investimentos custam 48 centavos a unida- de (as médias) e 42 centavos a unidade (as pequenas e grandes). Mas em 14 de fevereiro deste ano o Banco de Preços do Governo do Esta- do registrava um custo médio de R$ 21,14 para uma caixa com 100 luvas, ou 21 centavos a unidade.
O mesmo acontece com as 491 mil máscaras descartá- veis: mais de 90 por cento de- las saíram a R$ 1,70 a unidade, contra o R$ 1,20 pago pela Polícia Militar do Esta- do, apesar de a PM ter com- prado apenas 30 mil desses produtos, ou 16 vezes menos. No caso das 43.100 máscaras PFF2, 3.100 chegaram a custar R$ 29,90 cada, em 23 de abril, contra os R$ 21,00 pagos por unidade, no dia anterior, pelo Hospital de Clínicas Gaspar Viana, que comprou 2 mil máscaras desse tipo.
Por Ana Célia Pinheiro